A realidade de uma comunidade aos olhos de um guardião
Por I Talita Chaves
"Não existe uma relação entre o ser humano e a natureza. O humano é a própria natureza viva, por isso se cuida, se guarda, persiste, não desiste, respira, vem somos um só", ressalta Roniele Silva de Souza. Aos 29 anos, é um dos porta-vozes e guardiães da comunidade da Sabiaguaba. Filho de uma família tradicional de pescadores, o nativo lembra quando o avô começou o processo de povoamento da região que hoje vive às margens do Parque do Cocó. Na época, ele dividiu os filhos em cada trecho de terra da Sabiaguaba.
Roniele explica que os documentos que comprovam a existência de sua família e da comunidade na Sabiaguaba só registram a partir 1850, antes mesmo da construção do loteamento que surgiu no local. Porém, o guardião está fazendo levantamentos pessoais sobre a história de sua árvore genealógica e os dados indicam que seus antepassados habitam o território há mais de 300 anos e que seu povo tem acedência indígena da etnia Potiguara. "Estamos trabalhando em uma reconstrução de toda a história do meu povo para saber realmente quem somos, portanto, se for para dizer de fato há quanto tempo moro aqui, respondo ‘29 anos’, mas minhas raízes habitam aqui há mais de 300 anos e acreditamos que estamos aqui há cerca de 15 gerações", explica Roniele.
Criança brincando nas águas da Sabiaguaba Foto: Weider Gabriel
O guardião acredita que não existe uma relação entre a comunidade e a natureza, pois a comunidade é a própria natureza de fato. "Somos um só, basta você imaginar que o manguezal e a mata são nossos cabelos, imaginar que as águas que sobem e descem as dunas para os rios são o nosso sangue e que todo território existente até hoje é o corpo da comunidade que resiste e luta pela sua permanência no território", explica o filho de pescador.
"A partir do momento em que você mata a natureza, você também está matando a comunidade"
Roniele Silva
A especulação imobiliária está presente no local. O morador relata que o território da Sabiaguaba só é preservado por causa da comunidade que luta e se manifesta em defesa da terra para que os especuladores não estraguem a beleza natural do território. "A partir do momento em que você mata a natureza, você também está matando a comunidade. O nosso sentimento pela natureza é o mesmo pela mãe terra:é como se alguém amputasse um dedo nosso desmatando o mangue; é como se alguém cortasse um pedaço de minha pele destruindo um pedaço da duna", relata o guardião.
Vegetação do Parque do Cocó Foto: Magno Paz
Os nativos buscam seus alimentos de um modo diferenciado, extraindo da própria natureza os alimentos necessários à sobrevivência. "Temos nosso próprio alimento que pescamos, entramos na mata para colher nossos frutos e buscamos alimentos livres de agrotóxicos ou qualquer outro tipo de envenenamento", ressalta o pescador.
"Não somos contra o Parque, mas contra as violações de direito aos povos tradicionais, que estão sendo inviabilizadas"
Roniele Silva
Placa localizada na extremidade do Parque Foto: Weider Gabriel
Com a nova regulamentação do Parque do Cocó, a comunidade se sente ignorada, violada e insatisfeita com os governantes, que, segundo Roniele, não estariam viabilizando a comunidade, já que a regulamentação do Parque não garante a sustentabilidade das comunidades. "Não somos contra o Parque, mas contra as violações de direito aos povos tradicionais, que estão sendo inviabilizadas. A Lei Chico Mendes deixa claro que onde houver comunidades tradicionais não podem sesobrepor unidades de conservação integrais", ou seja, o Parque acaba por expulsar as comunidades de seus territórios originais", afirma o guardião.
Com a regulamentação do Parque, os povos tradicionais passam a ter limites territoriais, impedindo o livre acesso da comunidade a determinados locais. "A partir do momento em que é criado um Parque extrativista no nosso território, a comunidade não vai mais poder catar o marisco, pois vai estar sobre uma área restrita à caça; não vamos poder pegar o caranguejo, pois ele sai do mangue para o outro mangue; não vamos poder pescar em determinadas partes do rio, ou seja, a construção do Parque traz muitos problemas à comunidade", declara Roniele.
Comunidade Boca da Barra Foto: Weider Gabriel
O guardião assume o medo que sente em relação ao modelo de progresso prometido pelos governantes à comunidade da Sabiaguaba. "Eles falam de um progresso, mas não vejo sinalizações de Parque, não vejo ruas padronizadas, não vejo saneamento básico, não vejo progresso digno para Sabiaguaba, e eles vêm falar de progresso. Que progresso?", questiona o guardião.
"A especulação imobiliária visa às comunidades que eles julgam serem pobres. A meu ver, as comunidades de pescadores não são pobres. Sem os pescadores e agricultores, a sociedade não teria alimento na mesa, mas, infelizmente, somos a classe mais desprezada. Sou pescador, sou filho de pescador e tenho orgulho de ser pescador. Não preciso comprar meu alimento ou trabalhar em outra área para me sustentar. Garantimos a subsistência da população colocando alimento na mesa deles, mas não somos visto como pessoas dignas, e sim como seres pobres", declara Roniele.
O pescador acredita que as problemáticas envolvendo a regulamentação do Parque e os habitantes só serão resolvidas com um verdadeiro diálogo para que a comunidade entenda quais serão as mudanças e melhorias direcionadas a eles. "É necessário um plano de manejo bem estruturado e que não afete o meio ambiente, além de ruas padronizadas sem afetar o meio ambiente, pavimentação, saneamento básico, mais informações sobre os projetos que estão querendo para o Parque", informa o porta-voz.
“Nós não construímos nada, nós nascemos aqui, não invadimos nenhum espaço. A gente não degradou nada; pelo contrário, a gente protege”
Maria da Paz
Maria da Paz, 55, é pescadora e dona da barraca de praia mais antiga na Sabiaguaba. Foto:
A pescadora Maria da Paz, 55, que é dona da barraca de praia mais antiga na Sabiaguaba, fala sobre o medo que tem quanto às políticas de preservação do Cocó. Ela conta que a comunidade está ali desde antes da regulamentação do Parque, por isso defende quedeveria haver mais respeito e compreensão por parte do governo. “A minha família tem os primeiros moradores desta área.Nós nascemos aqui, eu tenho 55 anos, minha mãe nasceu na Sabiaguaba, meus avós nasceram aqui também. A Sabiaguaba era toda nossa e, de repente, veio a especulação imobiliária, o Governo entrou com tudo e o que eles querem fazer? Nos pegar como comunidade e nos marginalizar, nos colocar pra fora, porque é praticamente isso que está acontecendo”, desabafa.
A pescadora relata que já foi intimada por cometer crime ambiental, mas diz não saber como agir e o que falar, pois são práticas aprendidas com os pais. Diz ainda que não vê nada de errado em se alimentar da pesca e das frutas que o Parque oferece: “Nós não construímos nada, nós nascemos aqui, não invadimos nenhum espaço. A gente não degradou nada; pelo contrário, a gente protege”,afirma.
O medo e a insegurança em relação ao amanhã também perturbam os moradores da Boca da Barra. Muitos, por falta de informação, não sabem como agir, mas cobram uma ação do Governo para que sejam prestadas informações sobre o que se passa. "Todos os dias visitam as nossas casas com polícia ambiental, com guardas e chegam nas nossas casas e nos fotografam via aérea, terrestre e não sabemos quando isso vai acontecer. Tudo isso intimida, causa um pouco de medo, porque nem todo mundo sabe dos seus direitos. A qualquer instante eu me vejo sendo retirada daqui da minha barraca, que está aqui desde 1972”, desabafa.
A cobrança
Questionamos à Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Ceará sobre a questão da permanência das comunidades tradicionais na Boca da Barra e da Casa de Farinha. Por e-mail, o articulador das Unidades de Conservação Ambiental, Leonardo Almeida Borralho esclareceu que “com a efetivação do novo parque por meio do Decreto Estadual Nº 32.248/2017, de 07 de junho de 2017, e reconhecimento, por decreto, da comunidade tradicional da Boca da Barra da Sabiaguaba, de forma preliminar, existe a previsão de elaboração de estudos específicos e de regulação por termo de compromisso”.
Secretaria do Meio Ambiente (SEMA) divulga o Concurso Nacional de ideias do Parque do Cocó Foto: Weider Gabriel
“Após a conclusão dos estudos, a proposta do governo para as famílias consideradas tradicionais é que fiquem no parque como ecoguardiãs do território"
Leonardo Borralho
Leonardo destacou o artigo 4º do Decreto que traz a seguinte redação: “A permanência dos nativos e moradores de Sabiaguaba devidamente cadastrados junto ao Estado do Ceará, que se identificam como Comunidade Tradicional, na área de inserção da APA da Sabiaguaba com o Parque Estadual do Cocó, será regulada por termo de compromisso, sem prejuízo da conclusão do processo de identificação, por meio de estudos técnicos a serem realizados pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Ceará. Parágrafo único. Até a conclusão dos referidos estudos técnicos, serão garantidos a permanência de todas as famílias cadastradas, sua atividade econômica, e os usos dos recursos naturais, regidos conforme termo de compromisso e plano de manejo”.
O articulador das Unidades de Conservação Ambiental afirmou ainda que “até conclusão dos referidos estudos técnicos, serão garantidos a permanência de todas as famílias cadastradas, sua atividade econômica, e os usos dos recursos naturais”. Ressaltou que esta permanência prévia deve ser regulada por termo de compromisso. “Após a conclusão dos estudos, a proposta do governo para as famílias consideradas tradicionais é que fiquem no parque como ecoguardiãs do território e parceiras da SEMA na gestão ambiental, haja vista que as comunidades tradicionais têm a percepção natural deste senso de conservação, haja vista que isso afeta a produtividade e sua subsistência”, destacou. Ele explicou que, neste processo de cogestão, as duas comunidades já possuem assento permanente (uma vaga cada) no Conselho Gestor do Parque Estadual do Cocó, em processo de formação.
Questionamos à Secretaria sobre a denúncia de moradores da comunidade Boca da Barra de que haveria tratamento diferenciado entre eles e a empresas imobiliária. Também por e-mail, Leonardo Borralho ressaltou que empresas imobiliárias não podem fazer intervenções particulares em áreas de parque, “haja vista ser de dominialidade pública e de proteção integral”. Acrescentou ainda que: “Quanto à comunidade Boca da Barra não existe nenhum tratamento diferenciado com nenhum outro grupo. Inclusive a SEMA reconheceu, em caráter preliminar, a existência de comunidades tradicionais na Sabiaguaba e inseriu tal informação no decreto de criação supracitado. Além disso, a comunidade possui assento permanente (uma vaga) no Conselho Gestor do Parque Estadual do Cocó, em processo de finalização”.
Perguntamos se havia algum tipo de ação prevista para beneficiar os moradores da comunidade. Leonardo Borralho respondeu que “todas as ações previstas e pensadas serão discutidas com a comunidade e Conselho Gestor”.